Victor Almeida, médico no Hospital S. Teotónio, de Viseu é presidente da Associação Portuguesa de Medicina de Emergência. Tirou medicina na Alemanha, mas optou pelo seu país para fazer carreira. Clínico geral, especialista em Medina geral e familiar, com uma segunda especialidade em anestesia, tem uma experiência de 14 anos de carro médico, na chamada emergência pré-hospitalar.
Foi condecorado pelo Estado português, por ter participado numa missão com a GNR, no Iraque. A conversa surge a partir da recente polémica sobre a possível transferência do helicóptero do INEM a funcionar no heliporto de Santa Comba Dão, para Aguiar da Beira. O médico considera um erro grave, que vai custar muito dinheiro ao Estado.
O que é a Associação Portuguesa de Medicina de Emergência (APME)?
É uma associação sem fins lucrativos, que representa os médicos na área da urgência e emergência médica, e que está neste momento integrada na rede europeia das associações, fazendo parte depois da Sociedade Europeia da Medicina de Emergência. Foi fundada essencialmente por colegas da região Centro, que faziam serviço de INEM há 10 anos, quando foi fundada esta Associação.
Qual foi a necessidade que sentiram para criar a Associação? Os sindicatos e a Ordem dos Médicos não chegavam?
É sempre uma associação essencialmente cientifica [de medicina de emergência, urgência e medicina de catástrofe] e de representação dos profissionais. Achámos necessário, para já, porque todos os países europeus têm associações e sociedades nesta área, como têm outras especialidades. Não sendo ainda uma especialidade e havendo só um subtítulo basicamente, achámos necessário que se criasse uma rede de médicos e de colegas que, entre eles, delineassem o que achamos estratégias necessárias para o país, o que achamos importante, e fazer ouvir a nossa voz.
A Ordem não servia?
A Ordem [dos Médicos] tem outras funções. Nós colaboramos com a ordem, às vezes, envia-nos documentos para enviarmos parecer, para colaborarmos do ponto de vista técnico. Os sindicatos têm outro papel como é óbvio, mas também esses nos ouvem quando há dúvidas. Nós somos essencialmente e sempre uma instituição que funciona do ponto de vista científico, na base do voluntariado dos seus associados. E, como todas as associações, também hoje vivemos um bocado a crise do voluntariado. As pessoas têm cada vez mais dificuldades em gerir o seu tempo, para poderem dedicar-se a outras causas da sociedade civil.
Quem são os médicos que podem ser integrados na emergência médica, uma vez que não é uma especialidade?
A medicina de emergência ou de urgência não existe como especialidade. Em Portugal criou-se a chamada Competência de Medicina de Emergência, o que significa que existem três níveis de formação: existe a especialidade, existe a sub-especialidade da Ordem dos Médicos e existe depois a competência que está aberta a todas as especialidades. Qualquer médico que tenha um plano formativo e que acrescente à sua especialidade uma formação complementar dedicada à medicina de emergência pode depois ter este título da Ordem dos Médicos. Estamos a falar de médicos de família, de médicos de cirurgia, médicos de anestesia essencialmente que, fruto do trabalho que desenvolvem no INEM e fruto do trabalho que fazem nas urgências e nos cuidados intensivos, acabam por ter direito a ter esse título formativo, que a Ordem dos Médicos pode atribuir depois de analisar o curriculum.
É preciso ter esse título para desempenhar funções no INEM?
Não, mas foi sempre o nosso sonho. Trabalhar nas viaturas médicas exige alguma formação. Há 10 anos começámos com médicos de família. Não nos parece que se seja obrigatoriamente anestesista para trabalhar nas viaturas médicas, um bom médico de família que tenha formação nos hospitais, que faça serviço de urgência connosco e que depois faça uma formação complementar no bloco operatório, são perfeitamente capazes de fazer um trabalho brilhante na rua. Portanto, não achamos que seja absolutamente necessário. Obviamente que é desejável, o nosso sonho é que todos os médicos na emergência pré-hospitalar tenham amanhã uma especialidade nesta área, como é obvio.
Além da formação clínica, é preciso ter vocação para esta área?
Quando falamos de medicina de emergência não podemos ver só as viaturas médicas. A medicina de emergência inclui serviço de urgência dos hospitais, onde se presta a maior parte dos serviços, inclui serviço de helicópteros, inclui o planeamento e medicina de catástrofe, inclui as missões humanitárias, inclui um vasto leque de medicina de emergência e urgência. Se é preciso ter vocação? Qualquer médico deve ter vocação, não é com 19 valores que uma pessoa tem direito a ser médico ou deve ser médico. Tem que haver vocação, como em todas as profissões. É obvio que este tipo de actividade exige um espírito diferente ao que estamos habituados no hospital. Tem uma rotina diferente, há sempre o factor imprevisto, existe o risco da alta velocidade, que já diminuiu.
Têm subsídio de risco?
Não. Como é óbvio, existe indiscutivelmente um risco de vida, temos acidentes registados. No helicóptero, estamos a falar de um risco muito superior.
Há mais médicos disponíveis para este serviço, depois de retratado nas séries televisivas?
Mexeu não tanto com os médicos que já estavam habituados a isto, mas mais com o público, as pessoas já exigem esse tipo de socorro e com direito e com razão.
Como olha para essas séries?
Há muita situação real.
Também há um outro relacionamento dos utentes com os médicos?
Como sou anestesista, estou numa situação um bocado privilegiada. Os doentes têm sempre receio, mas depois de falarmos com eles, noto que existe um franco alívio desse receio. Agora, os colegas que estão nas urgências e que se confrontam com situações, por vezes, de violência verbal da parte de utentes, de familiares, tendo ou não razão… portanto, este elemento humano de ter um bocado de tempo para os doentes, esta forma de trato mais humano, é algo que se está a perder e isso preocupa-me como médico. Na emergência pré-hospitalar, só tenho tido boas experiências. Há um outro elemento que é fundamental: o nível de formação dos bombeiros e dos elementos da Cruz Vermelha melhorou substancialmente nos últimos anos.
O que se faz numa conhecida viatura do INEM?
Para já temos que distinguir os meios de socorro. Temos ambulâncias [de suporte e de socorro], temos os helicópteros, e a viatura médica de emergência e reanimação (VMER). O papel da viatura médica é essencialmente transportar a equipa médica (medico e enfermeiro) ao doente para estabilizar o doente no local, sempre que possível e, depois, acompanhá-la e tratá-la já no caminho para o hospital. Além disso, o nosso papel é avisar o hospital. No fundo, somos uma extensão da urgência do Hospital de Viseu. Quando vemos a viatura médica a funcionar no distrito de Viseu, as pessoas lêem INEM, mas o que está a funcionar é efectivamente uma extensão do serviço de urgência. Quem está na rua é o Hospital de Viseu.
A cobertura de emergência tem falhas no distrito de Viseu?
Se compararmos com o que acontece a nível nacional, o distrito está muito bem servido. Se compararmos com o que se faz no resto da Europa, o distrito está mal servido. Hoje, o material que o INEM tem à disposição é topo de gama. A logística em Viseu funciona muito bem. Se me perguntar se é desejável mais meios, é. Melhorar o socorro no distrito de Viseu, significa, a longo prazo, colocar ambulâncias com técnicos de emergência que possam suportar o primeiro impacto dos doentes, sobretudo os que estão mais longe.
A eventual transferência do helicóptero de Santa Comba Dão para Aguiar da Beira (distrito da Guarda), está a preocupar a Associação Portuguesa de Medicina de Emergência?
O projecto do helicóptero do INEM de Santa Comba Dão nasceu há 10 anos (suspenso passados quatro anos), fruto de um protocolo entre bombeiros e INEM. Em Portugal não se voava à noite e não havia socorro à noite com equipas médicas do INEM e havia profissionais dos Bombeiros de Santa Comba Dão, que arriscavam a vida para ir buscar doentes da Covilhã para Coimbra, por exemplo. Na altura apresentei, juntamente com a directora da urgência de Viseu, a dra. Alexandra Guedes, um projecto inovador que permitisse que se colocasse equipamento nesse sentido. O projecto foi apreciado pela protecção civil e o INEM avançou com uma ameaça de despedimento (risos) não gostaram que colaborássemos com os bombeiros, curiosamente houve um secretário de Estado inteligente na altura que disse: “vamos pôr isto a funcionar, vamos pôr uma equipa médica a testar”, e o sistema funcionou durante dois anos na perfeição, era o único a voar a nível nacional. Pouca gente sabe, mas Santa Comba Dão tem helicóptero de emergência a funcionar há 10 anos.
Agora, está preocupado com a transferência porquê?
As pessoas que trabalham no meio, as pessoas que conhecem a geografia, as pessoas que estão no terreno são unânimes, a colocação deste meio em Aguiar da Beira vai ser um erro e ao ser um erro será prejudicial para os doentes.
Na altura foi levantada essa questão?
Muito objectivamente. A própria Ordem dos Médicos fez pareceres na altura. Continuamos a ser um povo mesquinho, continuamos a olhar para o nosso umbigo e não olhamos para o todo. E o país tem que começar a pensar de forma coesa.
Qual é a questão que se coloca?
Um meio aéreo deve ser colocado onde faz falta. Faz falta em Aguiar da Beira? Claro que faz, como faz falta na Guarda, como faz falta na Covilhã, como faz falta em Castelo Branco…, agora, deve ser colocado onde é mais necessário, e se formos a ver para onde este helicóptero tem voado nestes últimos três meses, já nem falo nos últimos 10 anos, durante o dia fazem-se emissões para a Beira Serra onde não há viaturas médicas. A Beira Serra é onde temos mais aglomerados populacionais. Se colocarmos o helicóptero em Aguiar da Beira, grande parte da zona da Beira Serra e para baixo de Castanheira de Pêra ficam demasiado longe para o helicóptero. Estamos a falar à vontade de 20 a 25 minutos de diferença.
É relevante?
É isso que faz a diferença entre a vida e a morte.
O senhor coloca outras questões relacionadas com os profissionais.
A questão que sempre coloquei foi a seguinte: todo este método de recrutar profissionais para as viaturas médicas e helicóptero na base do voluntariado, é um erro. Deve ser profissionalizado. Isso causa problemas aos serviços. Não estou a pôr em causa o que se faz, acho é que a qualidade ainda pode ser melhorada havendo equipas mais fixas e mais estáveis. Em Abril houve buracos na escala, o que significa que houve dias em que o helicóptero não teve médico disponível para trabalhar. O Estado pagou a um helicóptero e não assegurou a manutenção dos recursos humanos necessários, porque estamos a fazer isto nas horas livres.
Esse problema coloca-se independentemente do helicóptero estar em Santa Comba ou em Aguiar da Beira.
Não. Os profissionais vêm essencialmente de Coimbra, de Viseu, de Aveiro e da Figueira da Foz. As pessoas que estão, por exemplo, na Figueira da Foz que já agora fazem 90 quilómetros, fora de horas, e que recebem menos 20 a 30 por cento do que recebem nos carros médicos – o que é incompreensível – chegam a um ponto e pensam: não vou fazer 120 quilómetros e perder dinheiro.
É a falta de médicos?
Não é a falta de médicos, é a falta de organização. Em qualquer parte do mundo um helicóptero destes está no hospital. Este helicóptero se estivesse no hospital de Viseu, era extremamente fácil.
Defende isso mesmo?
Era o ideal.
Santa Comba Dão também tem o problema do nevoeiro.
Essa não é a questão, não é isso que impede as missões. Se me perguntar do ponto de vista profissional médico, de manutenção, Viseu será a melhor opção. Se me perguntar do ponto de Vista estratégico, obviamente que Santa Comba Dão é a melhor solução. Aguiar da Beira fica fora de tudo. Isto vai custar muito mais dinheiro ao Estado.
Jornal do Centro
O tempo no Sátão
segunda-feira, 28 de junho de 2010
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